terça-feira, 6 de janeiro de 2009

O paradoxo dos sapatinhos

Por Nuno Crato
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O PAI NATAL, toda a gente o sabe, gosta de agradar. Mas também não gosta de desperdiçar presentes. Colocou dinheiro nos meus sapatinhos. Mas fizemos um acordo, ele e eu. Ou melhor, ditou-me ele as regras do jogo.
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Apareceu em minha casa, depois de uma noite em que eu tinha jantado com amigos e tinha bebido bem. Falou-me assim: «Meu caro Nuno, este ano trabalhaste muito e quero-te recompensar. Mas como os matemáticos julgam que sabem tudo, vou-te oferecer uma lição de modéstia, com muito dinheiro à mistura.»
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Esfreguei os olhos, boquiaberto — devia ter bebido mais do que pensava. Voltei a olhar, mas o velhote de barbas brancas ainda lá estava.
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«Vais colocar os teus dois sapatinhos na chaminé» — continuou. «No esquerdo vou pôr mil euros e no da direita ainda não sei; ou ponho um milhão ou não ponho nada. Tu tens duas hipóteses: ou escolhes o sapatinho da direita e deitas fora o da esquerda ou escolhes os dois. Se escolheres apenas o da direita, terei lá colocado um milhão de euros. Se escolheres os dois, não terei posto nada no da direita e ficarás apenas com os mil euros.»
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Fiquei confuso: «Pai Natal! Acho que percebo as regras, mas há uma coisa que não entendo. Tu colocas o dinheiro nos sapatinhos antes de eu fazer a escolha. Como sabes quanto dinheiro vais colocar no sapato direito, se não sabes o que vou fazer?»
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«Pois aí é que te enganas. Eu tenho uma capacidade de previsão portentosa. Prevejo com certeza quase absoluta o que vais escolher. Já joguei esta partida com gente muito mais esperta do que tu e nunca me enganei. Fiz a mesma proposta ao Pedro Nunes, só que não era em euros, pois na altura a moeda era outra.»
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Pensei, pensei, e adormeci. O velhote das barbas brancas não voltou a aparecer. Chegou a véspera de Natal e pus os meus sapatinhos na chaminé. Deitei-me, contente, pensando que tinha descoberto a saída. Era fácil. Bastava-me escolher o segundo sapatinho — lá estaria o milhão de euros à minha espera. Que sorte que eu tinha! O velhote era mesmo fixe!
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Na manhã seguinte, os sapatinhos estavam remexidos. O Pai Natal tinha cumprido a sua promessa. Havia alguma dúvida que ia escolher o da direita e deitar fora o da esquerda!?
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Nesse momento, parei. Sempre fui um bocado forreta e custava-me deitar fora o sapato da esquerda, onde de certeza estariam mil euros. E se ficasse com os dois?
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Estava nesse dilema quando ouvi na minha cabeça a voz do Pai Natal — «já joguei esta partida com gente muito mais esperta do que tu»... Pois era, ele sabia prever. Se eu fosse escolher os dois sapatinhos ele tê-lo-ia previsto e não estaria o milhão no sapato direito. O melhor era não ser sovina e deitar fora o sapato esquerdo.
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Mas, com um raio! Os dois sapatos já lá estavam, com o dinheiro lá dentro. O da esquerda tinha sempre mil euros. E o da direita, ou tinha um milhão ou não tinha. O melhor era ficar com os dois.
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Bloqueei. Se a escolha mais lógica fosse ficar com os dois, o Pai Natal sabia que era isso que eu faria e não teria posto nada no sapato direito. Mas como podia a escolha mais lógica ser aquela em que eu ficaria apenas com mil euros, podendo ficar com um milhão?
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O dia de Natal passou, o Ano Novo entrou, e continuo sem saber o que fazer aos sapatinhos. Apanhou-me bem, o raio do velhote!

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O Pai Natal desta história chama-se William Newcomb. O paradoxo inventado por este físico foi difundido pelo filósofo norte-americano Robert Nozick em 1969 e gerou imediatamente uma discussão acesa. Lógicos, matemáticos, economistas e teólogos têm discutido possíveis soluções para o paradoxo, sem se vislumbrar um consenso.
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O problema tem sido aparentado ao célebre dilema do prisioneiro, à teoria do livre arbítrio face a um ser omnisciente, à irreversibilidade do tempo e a outras questões lógicas e filosóficas cruciais. São as ramificações e dificuldade de solução que fazem a vitalidade de um paradoxo. Não se espante pois, leitor, se ficou surpreso. Bom Ano Novo!
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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 3 de Janeiro de 2009 (adapt.)
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